Tróia – Sagres – Cap. I


O primeiro troço do percurso foi de Tróia ao Carvalhal.

A imagem seguinte contém o percurso registado pela aplicação Highway Star que desenvolvi para o sistema operativo Android.

O ficheiro KML do percurso está aqui: Troia-Sagres-cap1.kml

Troia-Sagres-mapa-Cap2

Início: 23-03-2016, 07:54
Velocidade média: 4.447 km/h
Tempo: 05h 04m 22.134s
Espaço: 22.559 km

Os ferries atracam em Tróia no cais sul – que fica do lado leste da península, no Rio Sado – contrariamente aos catamarans, que atracam no topo norte da península, na doca do Adoxe. Como viajámos no ferry, devido ao preço, decidimos não caminhar, nesta parte inicial do percurso, pela areia da praia, para não termos que atravessar a península de leste a oeste até ao mar. Assim, seguimos pela estrada nacional 253-1 até à Comporta.

Cap2-EN253-1

Quase a chegar à Comporta, a península estreita-se e tem apenas cerca de quinhentos metros de largura. Nessa zona, em vários pontos da estrada, consegue-se ver água dos dois lados: o mar a oeste e o rio a leste.

Vista Leste: o Rio Sado
Cap2-Sado

Vista Oeste: o Atlântico
Cap2-Atlantico
Cap2-Atlantico-2

A estrada é plana, quase uma reta, e os automóveis passavam em grande velocidade: empregados nos serviços turísticos, fornecedores de produtos, empreiteiros. A maior parte dos automóveis passou no sentido sul-norte, contra nós, que caminhávamos na berma esquerda da estrada.

Cap2-Estrada

Cerca de duas horas após o início da caminhada, e doze quilómetros depois, chegámos à Comporta.

Cap2-Comporta

Decidimos fazer o resto do caminho, até ao Carvalhal, pelo meio dos campos de arroz, no caminho de terra batida que desce ao longo do canal que alimenta os campos de cultivo. Desta forma, evitámos o ruído dos automóveis, assim como o perigo constante de podermos ser atingidos por um condutor distraído. Os dez quilómetros restantes até ao Carvalhal foram percorridos nessa estrada.

Entrada nos campos de arroz
Cap2-Adega

O canal encontra-se ladeado de hortas e de pequenas construções de apoio às atividades agrícolas, na margem leste. De vez em quando, surge uma ponte artesanal. Algumas dessas pontes estão bastante deterioradas, mas outras são robustas e permitem até a circulação automóvel.

Cap2-ponte

Pouco depois de sairmos da Comporta, passámos por um agricultor que amanhava as suas terras, do outro lado do canal. Foi o agricultor mais novo de todos os que vimos no percurso. Teria pouco mais de cinquenta anos, contrariamente aos outros que encontrámos, que teriam já sessenta ou setenta. Cumprimentámo-lo e, ao ver-nos com as mochilas, perguntou-nos onde íamos. “Para o Algarve”, respondeu o Pedro. “Por aqui não se vai para o Algarve”, retorquiu de imediato. Mas depois, ficou um pouco parado a pensar e anuiu: não o disse verbalmente, mas percebeu-se.

“Eu já fui de Córdova a Sevilha, são duzentos e oitenta quilómetros, demorei vários dias”, continuou o agricultor, que não só era mais novo mas também tinha um aspeto diferente dos outros, um ar alternativo. “O caminho é sempre pela serra. Ia com outro tipo que andava depressa e me deixava para trás. Quando eu olhava, lá ia ele ao fundo. Mas quando chegava a noite, ele tinha medo e ficava parado. E aí eu apanhava-o.”

Mais tarde, quando escrevi este texto, confirmei que a distância de Córdova a Sevilha são cento e quarenta quilómetros, ou seja, metade do que ele referiu. Provavelmente estaria a falar da distância de ida e retorno.

Falámos um pouco mais, despedimo-nos dele e continuámos.

A meio do percurso, deparámos com um cavalo cansado ou, pelo menos, a descansar. O Pedro fez-lhe uma festa a meio da cabeça, entre os olhos e o nariz, e o cavalo levantou-se. Com receio que começasse aos coices, afastámo-nos. Provavelmente, queria apenas mais carícias, mas o desconhecimento causa medo e, por via das dúvidas, recuámos para uma distância de segurança. Ignorância de citadinos? Talvez.

Cap2-Cavalo

Ao longo do canal, apercebi-me da existência de pequenas comportas artesanais que vedavam a entrada de água para os talhões de cultivo de arroz. Nunca tinha reparado naqueles artefactos, apesar de aquele sítio ter sido objeto de peregrinação minha durante cinco ou seis anos há uns vinte anos atrás. Nessa altura, ouvia muito o Kind of Blue do Miles Davis e os temas desse disco ficaram conhecidos, para sempre, na minha casa, como a música dos campos de arroz.

Estudei Antropologia entre 1995 e 2000 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas e desenvolvi o gosto pela observação dos artefactos e ferramentas tradicionais, pelo que a descoberta das comportas da Comporta foram um motivo de rejúbilo para mim. Tinha decidido fazer esta caminhada para obter
proveitos de contentamento pessoal, de superação física e espiritual, mas tinha acabado de ser surpreendido por um outro tipo de satisfação: a descoberta do génio e engenho humano, que me deixa orgulhoso de ser um ser pensante pertencente a uma espécie criativa e laboriosa.

As comportas da Comporta
Cap2-comportas-1
Cap2-comportas-2
Cap2-comportas-3
Cap2-comportas-4

Nesta última fotografia, vê-se o tubo que está tapado pela prancha de madeira, e que é destapado para irrigar o campo de arroz que fica a oeste, do outro lado do caminho por onde transitávamos.

Pelo caminho, na zona da Torre, apanhámos e comemos três nêsperas para refrescar a garganta.

Cap2-Torre

À chegada aos Brejos da Carregueira de Baixo, parámos para verter águas e descansar os ombros do peso das mochilas, assim como os pés que já quase caminhavam há vinte quilómetros sem parar.

Descobri, nesse momento, que as unhas dos pés não estavam suficientemente curtas e que, com o andar, batiam nas botas e iam acumulando dor e lesões na raiz. Tinha, com urgência que resolver este assunto, para que não me caíssem unhas como na caminhada da Cova do Vapor para o Espichel. Durante as caminhadas seguintes, avisei insistentemente os participantes para cortarem as unhas dos pés e, inexplicavelmente, fui esquecer-me de o fazer nesta caminhada enorme, talvez a mais exigente que farei.

Ao fundo as núvens ameaçavam chover novamente. Já tinham caído umas pingas de água na península de Tróia e cairam mais umas gotícolas depois desta fotografia, mas nunca mais choveu até Vila Nova de Milfontes.

Cap2-Brejos-1

Durante todo o percurso do canal, por várias vezes apoderou-se de mim uma sensação de desolação, num espaço humanizado mas sem gente, e onde o lixo e os artefactos caducos abundavam.

Cap2-Brejos-2

Quase a chegar ao Carvalhal, filmei um minuto e meio do percurso.

Chegámos, enfim, ao Carvalhal, cinco horas após o início da caminhada, e vinte e dois quilómetros depois. Procurámos um sítio para almoçar, não sem antes fotografarmos alguns pontos de interesse.

Cap2-Carvalhal-1
Cap2-Carvalhal-2
Cap2-Carvalhal-2B

Estávamos quase a sair da povoação, à procura de uma sombra de um pinheiro grande, quando descobri que caminhávamos pela Avenida 18 de Dezembro: o aniversário da minha mãe.

Cap2-Carvalhal-3


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