Tróia – Sagres – Cap. III


O terceiro troço do percurso foi de Melides até Ribeira de Moinhos (Sines).

A imagem seguinte contém o percurso registado pela aplicação Highway Star que desenvolvi para o sistema operativo Android.

O ficheiro KML do percurso está aqui: Troia-Sagres-cap3.kml

Troia-Sagres-mapa-Cap4

Início: 24-03-2016, 07:20
Velocidade média: 3.762 km/h
Tempo: 05h 40m 14.260s
Espaço: 21.333 km

Passámos Melides e, à saída, no entroncamento da EN261 com a saída para a praia de Melides, encontrámos um local rebaixado, escondido dos olhares de quem passava na estrada. Parámos aí e jantámos. O Pedro montou a tenda debaixo de uma azinheira e fomos dormir. A tenda dava apenas para duas pessoas, sem espaço para as mochilas, botas ou sapatos. O sítio não era suficientemente escondido para eu deixar a minha mochila e as minhas botas fora da tenda, por isso, preferi dormir encolhido e acomodar a mochila e as botas na minha metade do espaço interior.

Pus o telemóvel e o tablet a carregar na bateria de chumbo e deitei-me. Estava frio. Tinha levado um saco cama quente e deitei-me com calças, meias e t-shirt. A meio da noite, a temperatura desceu e tive que vestir o casaco e colocar o gorro de lã. Apesar de estarmos a quatro quilómetros do mar, o ruído das ondas foi constante durante toda a noite.

Acordei várias vezes durante a noite com o vento e o frio. A dada altura, desliguei os dispositivos da bateria. Voltei a ligá-los às 5h20 e já não dormi mais. Às 6h15 levantei-me, comi uma bola de arroz e uma tangerina, lavei os dentes e esperei que o Pedro estivesse pronto para continuarmos.

Às 7h10 fui colocar as latas do jantar do Pedro no lixo e às 7h20 partimos para Sines. Às 7h48 filmei alguns automóveis que passavam depressa por nós.

Um pouco mais à frente, no cruzamento com a A26-1, apeteceu-me cantar o La Radio, do Eugenio Finardi.

À chegada aos Brescos, cortámos caminho por uma estrada de terra para evitar os automóveis que passam depressa e sem respeito pelos transeuntes. O silêncio e a frescura do campo pela manhã são revigorantes e não têm preço. Pena foi que só tenhamos tido um quilómetro de descanso.

Cap4-Brescos-1

Apesar das crises e de todos os tumultos financeiros em que vivemos, os sobreiros continuam a ser descascados na altura certa, como se a loucura do fundamentalismo económico não conseguisse penetrar nos rudimentos mais básicos da vida das comunidades.

Cap4-Brescos-2

O Pedro bebe muita água e precisou de encher as garrafas. Encontrámos uma senhora idosa, à porta de casa, a estender a roupa lavada, e o Pedro pediu-lhe água. Ela acedeu e até leh perguntou se eu não queria água também. Ele respondeu-lhe que eu não bebia muito.

Desde o início da caminhada, eu tinha apenas bebido um litro de café, mas a água ainda estava intacta no cantil. Levava um litro de água e ainda não a tinha usado, a não ser um pequeno golo para lavar os dentes. Não bebi água, mas comi apenas arroz, vegetais e fruta, ou seja, água!

Enquanto a senhora enchia as garrafas ao Pedro, fotografei-lhe o jardim.

Cap4-Brescos-3

A estrada A26-1, logo após Brescos, não tem berma para os peões. Temos que andar pela estrada e, sempre que necessário, resguardarmo-nos em cima das ervas rasteiras ou dos arbustos que ladeiam o alcatrão. Por vezes, há uns brincalhões que gostam de nos ver saltar para os arbustos, e foi o que me aconteceu nesta estrada, em que quase fui atropelado.

Ao longo da estrada, os postes de eletricidade e de linhas telefónicas têm sportes metálicos no topo para as cegonhas fazerem ninhos. Vimos várias dezenas de casais de cegonhas nos topos dos postes, neste estrada.

Cap4-Cegonhas

De repente, ao chegarmos a Santo André, aquela estrada estreita e sem bermas desembocou numa rotunda enorme e, do outro lado, tinha início uma autoestrada. Ficámos sem saber por onde seguir. Não consegui encontrar no mapa uma estrada alternativa. Pensámos prevaricar e seguir a pé pela autoestrada, pelo menos até encontrarmos uma via paralela que seguisse o mesmo rumo. Mas entretanto percebemos que a autoestrada ainda não tinha sido aberta: estava a funcionar em modo provisório, com uma faixa única em cada mão, e com um limite de velocidade de cinquenta quilómetros por hora. Havia pessoas a passar a pé e ciclistas nas bermas. Decidimos ir também.

A estrada era tão recente, que ainda se viam os desenhos pintados no chão, que assinalavam os locais onde deveriam ser colocados os sinais de trânsito. Fotografei um desenho de um sinal de cedência de prioridade a 100 metros.

Cap4-A26-1

A futura autoestrada A26-1 passa dentro de Santo André, cortando-a ao meio. Tem alguns viadutos que possibilitam aos santoandrenses passarem por baixo da A26-1 e deslocarem-se entre Santo André Leste e Santo André Oeste, mas todos os anteriores cruzamentos de nível foram eliminados. Será também este o procedimento em cidades maiores, ou há cidadãos de primeira e cidadãos de segunda categoria no país? Lembro-me, por exemplo, do eixo norte-sul, na zona do Lumiar, em Lisboa, que foi todo construído em cima de um viaduto com alguns quilómetros de comprimento, para não cortar a cidade ao meio. E, além disso, foram colocadas barreiras sonoras, para minimizar o impacto do ruído sobre a população.

Santo André foi construída de raiz, na década de 1970, para alojar os trabalhadores da região industrial de Sines. Foi projetada para cem mil habitantes, mas não chegou a passar dos quinze mil. [1] [2]

A primeira vez que estive em Santo André, foi em 1984, quando terminei a primeira caminhada vindo de Tróia pela areia, com a minha irmã mais nova, o Luís e o Paulo. Tive a sensação de a cidade, então vila, ser um projeto abandonado: casas vazias, por habitar, ninguém nas ruas, ruas por limpar. O vento e o silêncio haviam tomado conta de todo aquele espaço: desolador. Um projeto falhado, ou abandonado pelas entidades decisoras?

Voltei a Santo André há dois anos e estranhei a diferença. Era uma cidade viva, embora não consiga perceber de que vivem os habitantes. Qual é o motor daquela região? As indústrias de Sines? Talvez. Mas ainda assim fiquei com a sensação de uma cidade falsa, tal como a nova Aldeia da Luz, para onde foram empurrados os habitantes da velha aldeia inundada pela bacia do Alqueva.

A autoestrada que corta Santo André é o corolário desta impressão de terra abandonada: uma impressão que eu tenho, alimentada pelos sinais que fui colecionando desde há anos; a impressão de uma terra e uma população desrespeitada.

Vila Nova de Santo André, vista da A26-1
Cap4-SantoAndre

Continuámos pela A26-1 durante uns quilómetros. Apesar do limite de velocidade de 50 km/h, os veículos passavam a alta velocidade, o que não me deixava seguro nem descansado.

Parámos debaixo de um viaduto, à sombra, para descansar. Caminhar debaixo daquele sol, com a mochila às costas e com botas pesadas e fechadas até acima do tornozelo, era um martírio. À sombra estava frio, e o vento que soprava ligeiro ajudou a recuperar o ânimo. Descalcei-me, despi o casaco e massagei os pés. Apetecia-me ficar ali durante mais tempo, mas tínhamos que continuar. Consultei o mapa no tablet e percebi que havia uma estrada paralela, a oeste, que acompanhava a autoestrada até Sines. Decidimos, então, abandonar a A26-1 e passar para a estrada alternativa.

Saltámos a vedação. Primeiro saltou o Pedro; depois eu passei-lhe as mochilas; e, por fim, saltei eu. Quando estávamos do outro lado, percebi que tínhamos passado para a estrada que fica a leste. Aquela estrada, apesar de paralela à autoestrada, não ia até Sines, por isso decidimos saltar de novo para a A26-1, passar o separador para as faixas descendentes, e saltar de novo a vedação para o caminho a oeste.

Era uma estrada de terra e cascalho: árida, seca, coberta de poeira branca. Foi um percurso difícil. Talvez o pior de toda a caminhada. Doía-me o joelho esquerdo e fiz o caminho todo a coxear, a arrastar-me. O ritmo baixou para menos de 4 km/h.

Passámos junto de duas casas abandonadas: a primeira, de 1957, e a segunda, mais à frente, de 1958.

Cap4-Casa-1
Cap4-Casa-2

Parámos junto a uma estrutura de betão, onde me sentei para massajar as pernas. Procurei um ramo de árvore fino e forte para aplicar uma técnica de acupunctura: estimular o ponto E36 do meridiano do estômago, um ponto muito utilizado pelos orientais desde há séculos, para aumentar a capacidade de caminhada.

Para encontrar este ponto, com a perna esticada, coloca-se a palma da mão sobre a rótula, com os dedos para baixo, sobre a perna. Deixa-se o dedo médio entre a tíbia e o perónio. No local onde a ponta do dedo médio cair, junto da tíbia, fica o ponto E36 (ponto nº 36 do meridiano do estômago).

estomago36

Espetei o pau neste ponto durante um minuto e depois massagei-o, pressionando, durante dois a três minutos.

É uma técnica tonificadora do organismo e do sistema de locomoção muito mais eficaz do que ingerir bebidas energéticas, ou do que outras técnicas químicas ou artificiais. Já o tinha feito na travessia das ilhas da Ria Formosa, onde estimulei este ponto com o bico de uma concha partida.

Mais recentemente, nos jogos olímpicos do Rio de Janeiro, alguns atletas estão a utilizar técnicas de medicina chinesa tradicional com os mesmos objetivos. [ver DN]

Com muito esforço, chegámos à saída nº1 da autoestrada, para Ribeira de Moinhos. O caminho para Sines, por Ribeira de Moinhos, permitia poupar dois quilómetros, pelo que saímos da estrada paralela à autoestrada e seguimos para a direita.

Cap4-RieiraDeMoinhos

Era quase uma hora da tarde. Pelo caminho tinha telefonado ao Raul, que tinha combinado almoçar connosco em Sines. Estava na A26, quase a chegar a Sines. Subiu para a A26-1 e virou na primeira saída. Foi ter connosco a Ribeira de Moinhos e deu-nos uma boleia de dois quilómetros até Sines.

Em condições normais não teríamos apanhado boleia, mas o Raúl tinha pressa em almoçar pois tinha que voltar a Lisboa para jantar com os filhos. A boleia pareceu-me a decisão mais acertada para não atrasar alguém que tinha vindo de propósito só para almoçar connosco, fazer-nos companhia e dar-nos ânimo nesta caminhada louca.

Ia à procura de atum – a primeira vez que almocei em Sines comi um excelente bife de atum – mas não tínhamos muito tempo disponível para andar à procura de atum pelos restaurantes de Sines, por isso, ficámos no primeiro que encontrámos.

Almoçámos no “Baía de Sines”. As entradas foram mexilhões fritos e duas postas de moreia frita. O meu almoço foi polvo frito com alho e uma garrafa de 37,5 cl de Borba tinto 2006. Um vinho com 10 anos, com um toque de envelhecido, mas ainda suficientemente fresco para cortar a gordura da refeição. Fiquei satisfeito.

Durante o almoço, o Raúl, cujo pai foi uma alta patente do Exército, contou que em guerra, as marchas têm o limite de doze quilómetros diários, para evitar lesões nos soldados. Nós tínhamos andado quarenta e três quilómetros no dia anterior e, nesse dia, já íamos com mais de vinte e um. E o meu joelho esquerdo já me estava a dificultar a deslocação.

O Raúl propôs-nos levar-nos de volta. Ponderei a proposta, mas recusei e decidi continuar. Obrigado, Raúl, pela companhia e pelo apoio.

Cap4-Moreia


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