Tróia – Sagres – Cap. IX


O nono troço do percurso foi de Vila Nova de Milfontes até Almograve.

A imagem seguinte contém o percurso registado pela aplicação Highway Star que desenvolvi para o sistema operativo Android.

O ficheiro KML do percurso está aqui: Troia-Sagres-cap9.kml

Troia-Sagres-mapa-Cap9

Início: 31-03-2016, 18:56
Velocidade média: 5.446 km/h
Tempo: 02h 09m 02.548s
Espaço: 11.713 km

Voltei a Vila Nova de Milfontes, no dia 31 de março, para concluir o percurso. Não ia chover nos dias seguintes, de acordo com as previsões do IPMA. No entanto, as noites seguintes foram das mais frias do ano e isso impediu-me de dormir e descansar um número de horas aceitável.

Tive que trabalhar de manhã, por isso só pude sair de tarde. O autocarro chegou a Santiago do Cacém à hora prevista. Saí e esperei pelo segundo autocarro que me levaria a Vila Nova de Milfontes, e que deveria passar quarenta minutos depois.

Saí da estação e sentei-me no murete de umas escadas, ali perto, a apanhar sol. De vez em quando, passava uma pessoa. No total, terão passado cinco ou seis pessoas: de crianças a idosos. Estava quase na hora da ligação, quando surgiu uma mulher que vinha do parque de estacionamento, por trás de mim, saltou um degrau, avançou e viu que não havia passagem: o desnível era muito grande. Quis voltar para trás e tropeçou no degrau que há pouco tinha saltando. Caíu redonda no chão de terra. Enrolou-se, levantou-se e aproximou-se de mim. À minha frente havia um degrau quatro vezes mais alto. Ela não tinha conseguido saltar o primeiro e queria saltar aquele?
Correu tudo bem até pousar o pé. Depois não aguentou o impacto do peso do corpo e caiu, aos rebolões, pela escada abaixo. Bateu várias vezes com a cabeça e, no fim, ficou estendida a queixar-se.
Levantei-me e fui ver o que ela tinha. Ajudei-a a sentar-se e percebi que estava embriegada, cheirava a álcool a um metro de distância.
“Dói muito”, dizia ela agarrada à cabeça. “Dói muito.”
Ajudei-a a levantar-se. Trazia um casaco branco, espesso, agora todo sujo. Devia ter cerca de cinquenta anos.
Eu estava preocupado com as horas, pois não queria perder o autocarro e tirei o telemóvel do bolso. Ela viu-me pegar no telefone e disse-me, com um ar um pouco aflito: “Não, não. Não telefone a ninguém.” Sosseguei-a, disse-lhe que queria apenas consultar as horas.
Ela acabou por conseguir descer o resto das escadas, encostada à parede, e desapareceu.

O autocarro de ligação chegou meia hora atrasado, e esse atraso propagou-se até ao destino. Cheguei a Vila Nova de Milfontes próximo das sete horas da tarde, e foi a essa hora que dei início à segunda parte da caminhada até ao Cabo de São Vicente.

Vila Nova de Milfontes estava em obras, havia diversas ruas, incluindo a avenida principal, que estavam fechadas ao trânsito.

milfontes

Da paragem do autocarro à ponte sobre o Rio Mira são pouco mais de dois quilómetros, que percorri em cerca de vinte minutos. E encetei aí uma caminhada de mais de cem quilómetros, para sul, sozinho e, na maior parte do tempo, sem ninguém ao alcance da vista.

RioMira

Caminhei pela estrada nacional N393 para sul, que era cruzada constantemente por automóveis a grande velocidade. Estava desejoso de abandonar a estrada e enveredar por um caminho secundário, assim que fosse possível, porque não me sentia seguro a caminhar na berma daquela estrada.

Cerca de cinco quilómetros e duzentos metros após a ponte, há uma estrada de terra batida, à direita, a caminho de Longueira.

longueira-1

De início, o caminho segue ao longo de um pequeno canal de água e, do outro lado do canal, a lareira de uma casa enchia o ar húmido do entardecer, com um cheiro pesado a madeira queimada que me recordou São Tomé e Príncipe e as suas roças de copra.

O caminho até Longueira são pouco mais de dois quilómetros, numa estrada quase reta e, naquele fim de tarde, deserta de carros.

Estádio de futebol de Longueira
longueira-2

Não havia placa a indicar a entrada na localidade, mas a densidade de habitações apontava para que tinha chegado a Longueira. E os primeiros longueirenses que avistei, já de noite e iluminados pelos candeeiros públicos, foram dois indivíduos orientais: talvez indianos, ou indonésios.

Tinham saído de uma mercearia, lá mais à frente, e estavam a entrar numa habitação de rés-do-chão, quando passei por eles. Ainda olhei para dentro da casa, vi um hall iluminado por um candeeiro pendurado no centro do teto, mas não percebi mais nada. E digo “não percebi”, porque pareceu-me muito estranha a presença daqueles indivíduos ali, naquele ermo, a falarem numa língua ininteligível para mim.

Continuei a andar e passei em frente à mercearia. Saíram mais cinco orientais: cinco miúdos, com idades próximas dos vinte anos. “Não há alentejanos nesta terra?” interroguei-me. Mas as surpresas não iam ficar por aí. A loja vendia “produtos internacionais”: era uma loja de produtos asiáticos, mais precisamente, de produtos alimentares indianos e nepaleses.

Cruzei-me com os miúdos que, em conversa, me disseram que eram do Nepal e que estavam ali de visita. “Em Longueira, de visita?”, não pode ser, é a coisa mais improvável do mundo. Quem é que eles queriam enganar, com aquela patranha?

Vim a saber mais tarde, que aquela região do alentejo está pejada de miúdos que vêm do Nepal e outros países orientais, com vistos de turista, para trabalharem ilegalmente nas estufas de frutas e legumes que ocupam a maior parte das terras cultivadas daquela região do Alentejo.

Antes de sair de Longueira, vesti o gorro refletor e coloquei as braçadeiras refletoras nos braços e tornozelos, e entrei no caminho municipal CM1123 que me levou, um quilómetro depois, a Almograve.

almograve

Eram 9h da noite e decidi parar para jantar, no lavadouro municipal. É uma edificação rebaixada em relação à estrada, o que me permitiu comer à vontade, sem ser observado por quem passava.

O jantar demorou cerca de quarenta minutos. Estava bastante frio: quando acabei de jantar, tinha os dedos das mãos dormentes, e foi difícil reaquecê-los.

Lavei os dentes, arrumei tudo de novo na mochila e voltei à estrada.


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