Tróia – Sagres – Cap. XV


O décimo quinto troço do percurso foi do Monte Velho até Vila do Bispo.

A imagem seguinte contém o percurso registado pela aplicação Highway Star que desenvolvi para o sistema operativo Android.

O ficheiro KML do percurso está aqui: Troia-Sagres-cap15.kml

Troia-Sagres-mapa-Cap15

Início: 02-04-2016, 07:19
Velocidade média: 4.864 km/h
Tempo: 04h 13m 58.514s
Espaço: 20.588 km

Acordei cedo, antes das 6h da manhã. Ainda estava dentro da tenda quando ouvi o relinchar de um cavalo. Lá fora, o céu já começava a ganhar a luminosidade do dia. Não me mexi, não fiz barulho nenhum. Imaginei que o cavalo estivesse ali próximo e que pudesse investir sobre a tenda, ou então que me denunciasse e os donos me encontrassem naquela posição vulnerável. O tempo foi passando e deixei de ter a certeza sobre o som que ouvi: poderia até ter sido um javali. O melhor era mesmo ficar quieto.

Ao fim de algum tempo, sem que se ouvisse ruído algum no exterior, abri a tenda silenciosamente e saí com muito cuidado, depois de ter espreitado da esquerda à direita, pela abertura. Não vi ninguém. Saí.

Comi uma bola de arroz e uma maçã reineta, lavei os dentes, arrumei a tenda e continuei o caminho. Olhei a toda a volta e não vi cavalo nenhum, enquanto caminhava. Fiquei sem saber o que se passou.

Dali para sul, o caminho era estreito, pedregoso e inclinado. Mais à frente, a estrada alarga e perde a inclinação. Ao fim de dois quilómetros cheguei a um cruzamento. Do lado direito, ao fundo, estava uma manada de vacas, que ocupava a estrada toda. Talvez com receio de enfrentar as vacas, mas também porque esse caminho subia para noroeste, decidi virar à direita. Por descargo de consciência, consultei o mapa no tablet e percebi que tinha enveredado pelo caminho errado. Voltei para trás.

Tinha, agora, que enfrentar uma manada de vacas.Era a primeira vez que estava naquela situação. Não fazia ideia do que se iria passar, estava receoso. Eram talvez umas trinta vacas e todas elas pesavam, pelo menos, quatrocentos quilogramas cada.

Aproximei-me e decidi filmar o encontro: podia correr bem, podia correr mal. Estava a preparar o telemóvel para filmar o momento, quando as vacas começaram a mugir e a mostrar algum nervosismo. Enquanto me aproximava, não tirava os olhos delas, com receio de uma investida sobre mim. De repente, começaram em debandada, estrada abaixo. Quando dei início à gravação, já tinham desaparecido quase todas. Eis o que apanhei.

Uns seiscentos metros mais à frente, cheguei a uma planície onde estavam duas máquinas a desbastar o terreno: a cortar árvores e a arrancar raízes.

Azinheira cortada e arrancada pela raiz
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Mais abaixo, apanhei a estrada de alcatrão, a N268. Para a esquerda, a cerca de dois quilómetros, ficava a Bordeira. Segui em frente, para a Carrapateira. Passava pouco das 8h da manhã. Àquela hora, ainda não havia muito trânsito automóvel e, apesar da estrada não ter bermas, não senti que corresse grande perigo. Perto da Carrapateira, fotografei-me junto a uma árvore que está metade morta, metade viva.

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Na Carrapateira, telefonei ao Carlos, que estava em Budens, e que ia para Lisboa nesse dia. Tinha esperança de conseguir uma boleia, pois quando chegasse a Sagres, teria alguma dificuldade em conseguir transporte para cima. Teria que, primeiro, arranjar transporte para Lagos e, depois, um comboio ou um autocarro para Almada, onde provavelmente só chegaria já de noite.

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O Carlos disse-me que iria sair daí a duas horas e que se cruzaria comigo na estrada. Combinámos, então, que me trazia água, fruta e umas fatias de folar. Assim sendo, decidi não tomar um segundo pequeno almoço na Carrapateira, nem sequer comprar água. Além disso, havia tantos turistas no único café aberto, que não me quis misturar. Não tenho uma cultura de turista, não sou um turista, sou um caminheiro à procura de espaço, e de sentido também. E aquele turismo não sentido nenhum para mim.

Segui em frente, já com alguma sede e sem água no cantil, mas daí a pouco deveria estar a receber uma garrafa de água e fruta.

Pela costa abaixo, encontram-se muitos sinais do vento forte que sopra no litoral. Desde Tróia até ao cabo de São Vicente encontrei imensas árvores caídas, escostadas ao chão pelo vento forte e constante que assola a costa.

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Vinte minutos depois de sair da Carrapateira, parei para rearrumar a mochila. Continuei. Mais à frente, apercebi-me de que tinha deixado o cantil para trás. Já não tinh aágua, mas o cantil era do meu filho mais velho e eu não o queria perder. Cansado e desesperado, voltei para trás a toda a pressa.

Passou uma carrinha. Pensei em pedir boleia até ao cantil, mas não queria quebrar a regra de fazer o percurso todo a pé. Além disso, duvido que me dessem boleia, com o aspeto de caminheiro sem teto, que eu apresentava. Acelerei o passo, agora na direção norte, enquanto verificava se não me faltava mais nada. Com o cansaço, tudo era possível. Descobri, então, que trazia o cantil comigo. Estava mesmo cansado e desorientado. Voltei-me, de novo, para sul a caminho de VIla do Bispo.

Um amigo meu tinha um terreno perto da Raposeira, e recolhia burros, alimentava-os e tratava deles. Conheci-o na Suiça, em Berna: eu estava a fazer um curso de medicinas naturais, e ele era saltimbanco e malabarista de rua. Lembro-me perfeitamente da frase-refrão que ele usava: “Oui, oui, très joli”. Mais tarde, voltei a encontrá-lo na Costa de Caparica, onde me ensinou a fazer malabarismo com três bolas. Mais tarde ainda, nós dois, mais dezasseis cooperantes, criámos a Biocoop, uma cooperativa de consumidores de produtos de agricultura biológica. Tenho-o visto aqui ou ali, pelo país, mas penso que já vendeu o terreno e os burros.

Burro à beira da estrada
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Cheguei a Vila do Bispo, e telefonei ao Carlos. Eram quase 11h30. Ainda não tinha saído de casa. Pedi-lhe então, que adiasse um pouco a saída e que me fosse buscar ao cabo de São Vicente, para me levar para cima. Ficou combinado.

Desci até ao centro de Vila do Bispo e parei numa tasca. Como ainda não era meio-dia, a cozinheira ainda não tinha chegado, e por isso a escolha de petiscos não era grande. Pedi uma tosta mista, uma caneca de cerveja e um prato de percebos.

Bispo-07

Descalcei-me, coloquei os pés sobre as pedras frias da calçada, despi o casaco e fiquei apenas com a t-shirt encharcada de suor a arrefecer-me o corpo. Comi, bebi e, em meia hora, estava pronto para dar início ao último percurso: de Vila do Bispo até ao cabo de São Vicente.


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